As Sagas da Terra de Arnes: À Sombra do Cavaleiro Negro


Prólogo


As flâmulas balançavam ao vento naquela tarde em Dior. O exército vitorioso do “Flagelo de Heronte” chegava à capital de Trevis e era recebido com grande pompa. Os soldados traziam em seu peito o símbolo da igreja herotíngia, e uma faixa vermelha que representava a guerra santa.
A guerra travada contra os infiéis em Sethera, finalmente, havia tido sucesso. A cidade estava nas mãos dos Hetantes. Os infiéis que restavam estavam desaparecidos ou não poderiam mais ameaçar a religião de Heronte.
Na cidade a população estava nas ruas, recebiam os soldados com ovações e festa. Muitos tentavam tocar o cavalo ou em qualquer parte do corpo do general na esperança de serem abençoados. O que havia acontecido era um milagre, pois Sethera havia resistido a toda a forma de conversão a nova religião. A luta foi travada durante quase 20 anos sem ter obtido sucesso e agora, finalmente, haviam conseguido.
Vários países contribuíram para formação das armas de Heronte: Trevis, Ilano, Faruk e Arnes. Outros haviam mandado generais, soldados e dinheiro. Porém, durante todos estes anos a conquista da cidade havia sido infrutífera. O chamado feito pelo Sursis, Aqueu I, para que os Hetantes travassem guerra contra os infiéis, não foi suficiente para unir o exército dos países que durante todos estes anos, lutaram separados buscando a glória individual, mas tudo mudou após a sua morte.
Um novo Sursis, Aqueu II, foi eleito e era um treviano. Ele desenvolveu no seio do clero, generais divinos que eram treinados e ordenados pela própria igreja. Monges, abades e prelados recebiam treinamento militar e passaram a comandar os exércitos santos, pois haviam se infiltrado no seio destes países.

Dois anos em batalha e a conquista finalmente estava concluída. Todos os cultos pagões estavam destruídos e a verdadeira fé estava instaurada.
O som da marcha foi silenciado bruscamente. O exército finalmente havia chegado à Praça de Livina, onde ficava a Abadia de Heronte. A construção era belíssima e mais parecia um palácio que um templo. No largo, o exército foi perfilado enquanto o Sursis e o Rei de Trevis, Malik, esperavam o general.
O “flagelo” apeou de seu cavalo negro e se dirigiu às escadarias da Abadia. Suas passadas eram fortes e sua armadura resplandecia a luz do sol. Sua espada pendia em sua cintura e todos acompanhavam sua subida até onde estava o rei e o Sursis.
Era praxe que todos os soldados ao encontrar o rei, deveriam retirar o elmo, mas ele nunca o retirava de sua cabeça. Ninguém havia visto o seu rosto com exceção do Sursis, o único que conhecia a sua verdadeira face.
O general se aproximou do Sursis e ajoelhou-se perante ele fazendo com que o rei, ao observar a cena, tocasse seu ombro com o seu cetro de forma a indicar ao general a quem deveria prestar honrarias. Ele permaneceu imóvel até ser dispensado pelo Sursis a prestar honrarias ao rei.
Malik com um gesto de aprovação pronunciou.
-Trevianos, este é um dia marcante em nossa história. Todos os países que conhecemos estão hoje no seio da verdadeira religião. –levantou seu cetro em direção da população que se acumulava frente à abadia e continuou. - Esta vitória só foi possível graças à intervenção de um homem, um treviano o nosso amado Aqueu II. - Disse apontando para o Sursis que continuava impassível ao seu lado. - Este dia deverá ser lembrado para sempre. O dia em que as trevas foram banidas de nosso mundo. E comemoraremos com festejos e cultos de graças à Heronte. Não só em Trevis, mas também em Faruk, Ilano e Arnes.
  Malik se aproximou do general. Entregou seu cetro a um servo que o acompanhava, tentou retirar seu elmo, mas foi impedido pelo báculo do Sursis.
- O que pensa que está fazendo? – disse Aqueu rispidamente.
-Ora, o povo deve conhecer o rosto do homem que trouxe a vitória a nós. – respondeu o rei visivelmente contrariado.
-A vitória. – Disse o Sursis impassível. – Ela só pertence à Heronte, e nenhum homem deverá ser glorificado em seu nome.
O rei Malik recuou ao ver o olhar reprovador de Aqueu. Virou-se novamente para o general e de forma empertigada, despediu-se de todos descendo as escadarias da Abadia dirigindo-se à sua carruagem.
-Vamos trevianos! Às comemorações. - e seguido pelo seu séquito, se retirou para os festejos no castelo de Dior.
O Sursis continuou imóvel e após ver a carruagem do rei desaparecer pelas ruas da cidade dirigiu-se a população de forma impositiva
- Que as bênçãos de Heronte estejam sobre vocês. - E levantando Seu cetro saudou.
- Samadet! – Gritou o Sursis.
- Samadet! – Respondeu em coro a população.
- Vão! E não se esqueçam de render graças a Heronte!
 Após estas palavras, o Sursis ordenou que o general o acompanhasse até a abadia.
A pesada porta foi aberta pelos acólitos e no interior da abadia vários sacerdotes em oração rendiam graças à Heronte. Centenas e centenas de velas espalhadas pelas laterais do templo iluminavam seu interior. O Sursis, acompanhado pelo general, seguiu até uma parte onde a luz do sol irradiava seus raios nas paredes. E enquanto eles caminhavam, o som de suas passadas ressoava em toda a nave, concorrendo com o canto lamurioso dos monges.
- Orgulho! – disse o Sursis soturnamente. -Eu vi orgulho em seus olhos! Você gostou de ser elogiado?
-Não pai, toda a gloria se deve a Ele. –disse o general apontando para o teto da abadia.
O Sursis virou-se para o general e disse:
- Isso mesmo, todas as graças devem ser rendidas a ele. - e olhando diretamente nos olhos do general disse. - Espero que não tenha se esquecido de quem é!
O general baixou os olhos ao ser encarado por Aqueu II, e então, o sacerdote encostou seu báculo no peito dele e continuou de maneira ríspida:
- Você é uma maldita aberração! – E olhou-o de maneira ameaçadora. -Se eu não o tivesse salvado, hoje estaria condenado a uma eternidade de sofrimentos no Rell!
- Sim pai! E sou muito grato por isso. - disse o general continuando com seu rosto dirigido para o chão da abadia.
- Grato? – gritou o Sursis caminhando ao redor do general. - Gratidão é uma palavra sem força. Você me deve a sua maldita alma!
O general começou a tremer. Ele sempre se abalava quando o Sursis falava daquele jeito.
- Sua mãe foi coberta por um infiel, um maldito... - Fez uma cara de asco. – Elfo. - E cuspiu no chão. - Mas apesar disso, eu o recolhi e o tratei como filho! Cuidei de você e retirei todas as malditas marcas da raça daquelas aberrações. E você retribui tudo isso com orgulho?
-Não pai!- Disse o general com a voz embargada. - Com a vitória!  Minha missão em Sethera está terminada e toda a terra está sobre o poder de Heronte.
- Não filho ainda não está!- disse o Sursis um pouco mais calmo. - Ainda existe uma local que não se curva a Heronte. E enquanto existir infiéis, sua redenção não será conseguida.
- Mas pai! Eu já lutei em todas as terras e não existem mais infiéis. – disse abalado. - E me foi prometida a redenção quando conquistasse Sethera...
O Sursis levantou seu báculo e acertou violentamente o enorme cavaleiro que não se mexeu com o castigo.
-Não me questione! – gritou. - Você nasceu de um maldito servo da escuridão. Sua salvação é praticamente impossível. Quer jogar a única chance de redenção fora?
O enorme cavaleiro abaixou a cabeça e permaneceu em silêncio.
- Você tem sorte de eu possuir toda a bondade de Heronte.- disse o Sursis de forma calma. – Ainda não terá sua redenção, mas resolvi recompensar seu empenho. – e tocando em seu ombro disse. -Meu filho, retire seu elmo!
O general retirou o elmo com todo o cuidado, enquanto o sursis o observava. O general revelou uma face marcada. Suas orelhas foram mutiladas de forma a se assemelhar a dos homens, mas seus olhos ainda refletiam o verde brilhante dos elfos. Sua pela era clara como a neve, seu rosto era imberbe, e apesar das marcas, era visível a sua beleza.
- Sua penitência de esconder o rosto foi retirada. Agora você será ordenado Abade.
O general bateu suas mãos no peito e abaixando a cabeça disse.
-Obrigado pai!
O Sursis passou as mãos no rosto do general e levantando sua face disse: –Filho lembre-se sempre de quem o recolheu e quem o ama. Você quer ser salvo e viver no palácio de Heronte a meu lado por toda a eternidade?
-Sim meu pai é o que mais desejo!
-Então filho! Cumpra seu destino. Continue sendo uma ferramenta dele e sua redenção será recebida.
-Sim, eu o farei!
-Ótimo! Levante-se! – disse apoiando-se no báculo. – A partir de hoje você recebera um nome e será ordenado. Está livre da sua armadura e receberá uma nova missão. Vá para Arnes!  Cuidará de um templo e uma comunidade. Deverá permanecer como sacerdote em silêncio e aguardará minhas ordens.
-Pai, por que Arnes?
- Meu filho! Arnes paga tributos, mas nunca nos rendeu total servidão. - O rei Glauco é poderoso! E seu país possui o melhor exército de toda terra. Melhor até que o seu! – e sinalizando para que os acólitos trouxessem seus instrumentos de cerimônia continuou. - Você será meus olhos e meus braços em Arnes.
O Sursis movimentou suas mãos e quatro monges vieram até o general e começaram a retirar sua armadura e espada. O general possuía um corpo esbelto e musculoso. Sua pele estava coberta por cicatrizes e, suas costas apresentavam sinais de expiação e autoflagelação.
-Ajoelhe-se! – ordenou o sursis.
Os monges trouxeram incensos, espada, roupas, um livro com a capa em bronze adornado e um cordão dourado. Posicionaram os objetos à frente do Sursis que começou celebração do rito de ordenação.
- Por Heronte, o único. Aquele que nos protege e nos trás a luz. Eu abençôo estas vestimentas para que seja utilizada com todo o fervor pelo seu servo. – disse com a voz retumbante. - Que esta espada e livro sagrado sejam usados em sua honra, ensinando a verdadeira fé e perseguindo as trevas. – continuou levantando os objetos. - Agora Heronte, eu lhe apresento seu servo. Ele que lutou em seu nome, e que apesar de ter nascido de berço infiel, o tem servido com toda sua força, provando ser digno de receber a ordenação e ser um representante da verdade e da luz.
- Levante-se. – o sursis continuou o ritual com a mão direita imposta e disse: – Filho! Te liberto dos grilhões da guerra e lhe visto com as vestes do sacerdócio para que seja uma luz aos hetantes. Entrego-lhe a espada e o livro sagrado que eles sejam suas armas contra os infiéis.
Os monges vestiram o general e entregaram-lhe suas novas armas e após prenderem o cordão dourado, o Sursis se afastou.
Os monges entoaram os cantos de ordenação, e em meio à fumaça do incenso, que se espelhava pela abadia, nasceu um novo sacerdote.
- Agora vá! – disse o Sursis. - Você não deve se demorar. Ficará no anonimato até receber minhas ordens. Fará tudo que lhe for ordenado e encontrará uma maneira de dobrar e dominar toda a terra de Arnes.